Mais um surto de sarampo e logo voltam as dúvidas sobre a propagação da doença. Recorde-se que a doença foi dada como erradicada em 2016. Curiosamente, muito pouco tempo depois começaram a surgir novos casos de pessoas infectadas em Portugal. E sempre que isso acontece há alarme e, principalmente, a insinuação de que a culpa é de quem não está vacinado e, por essa razão coloca em risco a imunidade de grupo, bem como uma insistente e quase coagente pressão para que todos se vacinem.
Mas, na verdade, há muitos anos que a imunidade de grupo não está posta em causa em Portugal. A esmagadora maioria das pessoas está vacinada contra a doença ou já teve a doença e, por isso, está imune (pelo menos, os que já tiveram a doença). Além disso, os dados de que dispomos dizem-nos que a taxa de cobertura vacinal é elevada (acima dos 95%), mais do que suficiente, segundo os especialistas.
Ontem, no Jornal da Noite da SIC houve um debate sobre esta “problemática”. Os convidados de Clara de Sousa foram a directora-geral da saúde, Graça Freitas, a médica e ex-ministra da saúde, Ana Jorge, o presidente do Instituto Ricardo Jorge (INSA), Fernando Almeida e o bastonário da ordem dos médicos, Miguel Guimarães.
Bem, no início do debate eu achava que estavam reunidas as condições mínimas para haver um bom esclarecimento sobre a inquietante questão que parece ser o sarampo e vacinação. A verdade é que me enganei. O debate não foi debate nenhum, foi uma reunião de velhos conhecidos a trocar uma série de afirmações profundamente contraditórias, mesmo quando eles (os quatro) achavam estar em total sintonia e, como não podia deixar de ser, apelando num tom quase intimidatório à vacinação de toda a população. E eu nem sequer vou entrar na discussão se se deve vacinar ou não, já que a esmagadora maioria da população está vacinada e/ou já teve a doença, pelo que a imunidade de grupo não está em causa. Ou será que está? Se sim, a comunidade científica e médica não têm falado verdade sobre os índices da imunidade de grupo, muito menos sobre a eficácia da vacinação e da sua função preventiva que, até há bem pouco tempo era de garantia total.
Passemos então às contradições. Comecemos por recordar aquilo que diziam as entidades da saúde, principalmente, o próprio ministro da saúde, aquando do primeiro surto que ocorreu no ano passado. Todos diziam que a “culpa” de o vírus voltar a estar activo e a propagar-se era da população não vacinada. E que o problema se resolvia com a vacinação desse grupo de pessoas.
Pois bem, no referido debate ficámos a saber que “vacinar, vacinar, vacinar” é a palavra de ordem, ao mesmo tempo que também se soube que, afinal, a imunidade de grupo não está em causa, já que está a um nível não inferior a 95%, sendo que o próprio presidente do Instituto Ricardo Jorge afirmou que ainda poderia estar um pouco mais baixa que não haveria qualquer problema. Mas é urgente vacinar.
Soubemos que 98% da população no norte do país, onde está a acontecer o maior surto de sarampo após a erradicação da doença, está vacinada. Mas a ordem é para vacinar já.
Houve quem argumentasse que uma dose da vacina pode não ser suficiente, algo que há uns meses atrás nem sequer era objecto de discussão, pelo que o melhor é repetir a vacinação, principalmente os profissionais de saúde. Contudo, sabe-se que uma grande parte dos infectados neste surto são precisamente os profissionais de saúde que, na esmagadora maioria dos casos tomaram as duas doses da vacina. Mas a palavra de ordem, mesmo para este grupo, continua a ser “vacinar, vacinar, vacinar”. Lá para o fim do debate até se chegou a falar numa terceira dose de vacinação, imagine-se.
Fernando Almeida, presidente do INSA disse, a dada altura, aquilo que a maioria dos portugueses sempre soube ou acreditou, que é o facto de que quem teve a doença está totalmente imune para o resto da vida. Contudo, Ana Jorge disse que já houve casos de pessoas (principalmente crianças) que tiveram a doença e mais tarde voltaram a tê-la, sendo que nesses casos, normalmente é fatal, lançando o alarme para o facto de que quem teve a doença não pode nem deve estar descansado. E qual a solução que aponta a senhora ex-ministra? “Vacinar, vacinar, vacinar” que, como se percebeu, não é solução.
Ana Jorge insistiu em criticar a postura dos pais que não querem vacinar os seus filhos. Mas os pais daqueles que agora estão infectados vacinaram os seus filhos. Então, em que ponto ficamos?
Graça Freitas, directora-geral da saúde, quando confrontada com o facto de a doença ter sido dada como erradicada há pouco tempo disse que não se pode impedir que o vírus circule, porque as fronteiras estão abertas e as pessoas circulam de país para país. Certo. Mas, então, um só indivíduo, vindo de fora do país, pode colocar em risco a imunidade de grupo que se encontra num elevado grau de eficácia (acima de 95%)? E onde a taxa de vacinação ronda os 98%?
Perante esta discussão estéril que, por onde quer que andasse, levava sempre à mesma conclusão, ou seja, que a vacinação não impede com total eficácia a manifestação da doença, os quatro ilustres convidados sustentavam reiteradamente que os vacinados que estão infectados (mesmo com todas as doses) têm a vantagem de ter sintomas mais ligeiros e de não apresentarem risco de contágio. Pois bem, se não apresentam risco de contágio por que razão há um surto? Querem que acreditemos que foi um único transmissor (aparentemente vindo de fora de Portugal) a contagiar todos os profissionais de saúde agora infectados? Se os profissionais infectados não contagiam…
No final a directora-geral da saúde insistiu na vacinação e não foi capaz de se ir embora sem antes semear o medo, afirmando que andam aí muitas bactérias e vírus. Portanto, “vacinar, vacinar, vacinar”. Mas, não será antes “revacinar, revacinar, revacinar”?
Parece-me óbvio que uma pessoa que nunca teve a doença e que não está vacinada incorra num maior risco, caso seja exposta ao vírus, mas esse grupo é muito reduzido em Portugal. Não obstante, as minhas dúvidas estão centradas no discurso dos profissionais e das autoridades da saúde. Resumindo, até agora apregoavam que só os não vacinados que nunca tinham tido a doença é que corriam riscos e bastava que se vacinassem para resolver o problema. Agora os já vacinados também devem revacinar-se e, para meu espanto, até aqueles que já tiveram a doença poderão ser aconselhados à vacinação, segundo as afirmações do bastonário da ordem dos médicos e da ex-ministra Ana Jorge, quando até agora estavam totalmente imunes. Esta mudança repentina de paradigma sobre algo que já não deveria suscitar qualquer dúvida levanta, no mínimo, algumas objecções.
Querem ver que, um destes dias, quando já toda a população tiver sido vacinada e revacinada vão querer vacinar também as árvores.
Estranhei o facto de ainda não se ter falado na possível mutação do vírus, algo que, eventualmente, poderia justificar a falta de eficácia da vacinação. Seria algo muito mais óbvio e compreensível.
E foi assim. Um grupo de supostos especialistas a falar de um assunto que aparentemente dominam, mas em constantes contradições. Num momento em que seria importante um verdadeiro e transparente esclarecimento da situação, tivemos aquilo que mais parecia um simpósio de delegados de propaganda médica.