O antigo Presidente da República, general Ramalho Eanes, esteve na RTP para uma entrevista onde abordou a actual pandemia. As suas opiniões sobre a actual situação teriam (provavelmente) passado despercebidas, não fora o facto de o senhor general ter-se deixado contagiar por esse outro vírus que tem infectado algumas figuras públicas e que as leva a proferir frases chocantes e emotivas, com o único objectivo de as catapultar para a posteridade que, nos tempos que correm, dura apenas 2 ou 3 dias.
A certa altura, o general Eanes decidiu dizer o seguinte: “Se necessário, (nós, os velhos) oferecemos o ventilador ao homem que tem mulher e filhos”. Disse também que: “Nós, os velhos, não saímos de casa…”. Ora, não é verdade, porque o senhor general deslocou-se até aos estúdios da RTP, quando não o deveria ter feito.
Bem, voltemos à primeira frase, aquela que fez manchetes em jornais, que circulou pelas redes sociais e que levou muitos a opinar sobre a mesma. E agora é a minha vez.
De facto, foram muitos os que elogiaram a afirmação do antigo Presidente da República, atribuindo-lhe uma enorme humildade, generosidade e humanidade. Pois eu não posso estar mais em desacordo com todas essas opiniões e, principalmente, com aquilo que disse o general. Mas que raio de humanidade é esta que, num cenário mais catastrófico, poria de lado “os velhos” em favorecimento de um homem (mais novo) que tem mulher e filhos?
Se o facto de o general Ramalho Eanes ter 85 anos lhe confere autoridade para dizer o que disse, então, posso depreender que, tendo eu menos de metade da sua idade posso contrariá-lo com toda a veemência. É claro que todos somos livres de termos as nossas opiniões, mas aquilo que o general Ramalho Eanes fez, numa entrevista à televisão pública emitida para todo o país foi, sem dúvida, uma tremenda irresponsabilidade. É profundamente lamentável que alguém na sua posição diga aquilo que disse. E logo o general Eanes que, em abono da verdade, até costuma ter opiniões ponderadas e assertivas. Se calhar disse-o porque sabe muito bem que, apesar dos seus 85 anos, por ser quem é, jamais terá de passar por uma situação desta natureza. Logo aí, a sua afirmação bombástica perde legitimidade.
Não, meu caro general, a vida não é como na tropa, onde há patentes diferenciadoras. Onde o soldado raso vai para a frente da batalha dar o peito às balas e o general fica na retaguarda. A vida é outra coisa. E humanismo é, antes de tudo, igualdade entre todos os seres humanos.
Se esta crise sanitária nos levar ao ponto de ruptura nos hospitais (esperemos que não), em que poderá ser necessário decidir a quem atribuir os ventiladores, o critério nunca deverá ser o da idade. Desde logo porque isso não garante o sucesso da hipotética opção. Quem esteve atento ao que se tem passado nas últimas semanas ou meses, um pouco por todo o mundo, apercebeu-se que existem muitos casos de pessoas muito idosas, algumas com mais de 100 anos, que tiveram a sua vida por um fio nos cuidados intensivos, ligadas a um ventilador e, felizmente recuperaram. Por outro lado, algumas pessoas bastantes mais novas e até jovens, se calhar alguns deles com mulher e filhos, infelizmente não resistiram. Portanto, o critério defendido pelo general Eanes não faz qualquer sentido. Apenas chocou e emocionou os mais distraídos e superficiais.
Mais ainda, imaginemos essa hipotética situação limite e catastrófica que obrigaria os médicos a ter que optar a quem atribuir os ventiladores. Se fosse seguido o conselho do general Eanes, “os velhos” teriam que dar a vez aos homens mais novos com mulher e filhos. Então, e quando todos “os velhos” já tivessem sucumbido, qual seria o segundo factor preferencial do general Eanes para a atribuição dos ventiladores? Fiquei curioso. Será que iriamos partir para o estatuto social dos maridos com filhos? Ou passaria a contar o número de filhos? Quem tem mais filhos passa à frente? Será que iriamos considerar a profissão de cada um e estabelecer um grau de importância? Do tipo, os patrões devem ter acesso preferencial a ventiladores porque são pessoas que dão emprego a muita gente e a sociedade precisa mais deles do que de um reles operário. Ou então, os sem-abrigo passam a estar no fundo da estratificação de acesso a ventiladores, bem ali junto “aos velhos”, porque já não têm nada para oferecer à sociedade. Mas o que é isto?
Já agora, senhor general Ramalho Eanes, na sua visão “humanista” sobre este assunto, “os velhos” devem dar o ventilador só aos homens que têm mulher e filhos ou a qualquer outro indivíduo significativamente mais novo? Se esse homem for solteiro e não tiver filhos já não merece passar à frente do “velho”?
Caro general Ramalho Eanes, aquilo que o senhor disse foi extremamente irresponsável e desumano. Foi também muito perigoso, porque vindo de alguém com as suas responsabilidades, pode dar azo a situações muito perigosas. Os velhos, como o senhor disse, já são suficientemente mal tratados neste país, não precisam de ouvir conselhos desta estirpe.
O critério, nesta pandemia ou em qualquer outra situação, nunca poderá ser o da idade, do género, da religião, da posição social ou da situação financeira. Não. O critério terá que ser sempre um e um só: o critério clínico. Nada mais.