A verdade é outra coisa
Parece que Marques Mendes é o novo porta-voz da Direcção-Geral da Saúde (DGS), já que foi ele que veio apresentar as “suas” conclusões sobre um estudo levado a cabo pelo INSA e pela própria DGS, sem que alguma das entidades responsáveis pelo estudo se tenha dado ao trabalho de o fazer.
Marque Mendes e a SIC – sim, a SIC tem responsabilidade nas afirmações de Marques Mendes, na medida em que não faz o contraditório – dizem que “os casos de covid-19 em Portugal são agora mais do dobro do que há um ano. Ainda assim, o número de internados e de mortos é muito inferior”. É verdade, sobretudo em relação aos óbitos, mas esqueceram-se de referir que agora se fazem cinco a seis vezes mais testes, algo que altera e muito a detecção do número de casos. Se não testarem ninguém, não haverá casos.
Sobre o estudo do INSA e DGS, Marques Mendes apontou as seguintes principais conclusões:
- Em Outubro, das pessoas internadas com 80 ou mais anos, só 35% estava vacinada. Tal significa que, em cada seis, só duas estavam vacinadas.
- Também em Outubro, das pessoas internadas com 50 a 59 anos, só 14% estava vacinada.
- Em Novembro, 67% das pessoas que morreu na faixa etária dos 80 ou mais anos não estava vacinada.
Quem, no seu perfeito juízo, acredita em tamanha mentira?
Ora, convinha que se soubesse que no que respeita às hospitalizações e mortalidade na faixa etária entre os 65-79 anos, o estudo incide sobre o período entre 30 de Março de 2021 e 11 de Agosto de 2021 e 30 de Março e 9 de Agosto respectivamente. Já no que respeita à faixa etária das pessoas com 80 ou mais anos, o estudo incide sobre o período compreendido entre 2 de Fevereiro e 11 de Agosto (hospitalizações) e 2 de Fevereiro e 7 de Agosto (mortes). Portanto, o estudo comporta um período cirurgicamente escolhida para incluir o momento em que ocorreu a maioria das mortes e internamentos, que coincide com o período onde praticamente não existia ninguém completamente vacinado. Também por essa razão, o estudo inclui no grupo dos não vacinados, os vacinados com apenas uma dose. As coisas de que esta malta se lembra. Viva o rigor destes “especialistas”.
Se bem se lembram, precisamente no passado mês de Agosto, a directora-geral da saúde, Graça Freitas, dizia sobre a mortalidade que “a maior parte das pessoas tem as duas doses da vacina”.
No início do mês de Agosto deste ano, o jornal Público também dizia que "99% das mortes por covid-19 entre Janeiro e Julho foram em pessoas sem vacinação completa", quando 98% dessas mortes haviam ocorrido num período em que praticamente ninguém estava completamente vacinado. A perfídia é a mesma.
Voltando ao estudo do INSA e DGS, o mesmo refere o seguinte:
“Relativamente à ocorrência de óbitos por COVID-19 tendo em conta o estado vacinal, verificou-se que, no mês de novembro (entre 01 e 30 de novembro de 2021), ocorreram 195 óbitos (65%) em pessoas com esquema vacinal completo contra a COVID-19, 10 (3%) óbitos em pessoas com dose de reforço e 95 óbitos (32%) em pessoas não vacinadas ou com vacinação incompleta”.
Mas, logo de seguida, apresenta gráficos – para os Marques Mendes desta vida paparem e papaguearem – que apresentam dados contraditórios. Dados que que os próprios especialistas analisam com expressões do tipo “parece que…”. Como é possível alguém dizer – e logo na televisão, em horário nobre – que 67% dos mortos com 80 ou mais anos não estão vacinados, quando é o próprio estudo que diz que 65% dos óbitos totais ocorrem em pessoas com vacinação completa? Como bem sabemos, os óbitos ocorrem essencialmente nas idades mais avançadas. Como pode uma jornalista, ao serviço de um dos principais órgãos de comunicação social, ouvir tremenda atrocidade e nem sequer ser capaz de questionar. Pior que isso, assentiu com maravilhada estupefacção.
Outra coisa que o estudo refere, assim como quem não quer a coisa, tem a ver com o facto de os seus autores terem dito que “estes resultados apenas têm em consideração a ocorrência de hospitalização”, ou seja, se alguém esteve internado por outra razão qualquer que não a Covid-19 – e terão sido muitos – mas que durante o período de internamento tenham testado positivo, esses também foram incluídos no estudo como internamentos Covid, algo que enviesa as conclusões.
Outra situação que está patente no estudo é a forma como procedem à aferição da efectividade vacinal. O estudo não refere com exactidão como procedeu para chegar àqueles gráficos manhosos que o Marques Mendes apresentou. Contudo, está mais do que claro que os cálculos não foram efectuados correctamente, aliás, o estudo está repleto de incongruências. Primeiro, o período do estudo não corresponde aos meses de Outubro e Novembro. Segundo, muito provavelmente consideraram a taxa de hospitalizações e mortalidade tendo por base o número de internamentos e mortes das pessoas vacinadas comparados com o número de pessoas vacinadas que testaram positivo. E fizeram o mesmo em relação aos não vacinados. Como bem sabemos, o número de pessoas não vacinadas (com mais de 80 anos, por exemplo) é ínfimo, pelo que meia dúzia de casos nestas pessoas dará uma taxa enorme, por contraponto daquilo que acontece na população vacinada, que é quase a totalidade, pelo que o número de casos de pessoas vacinadas internadas e/ou mortas comparado com o número de casos positivos verificados nessa mesma faixa etária dará uma taxa muitíssimo mais baixa. Certo? Nada como um exemplo:
Imaginemos que em 100 pessoas que testam positivo, 95 estão vacinadas e apenas 5 não vacinadas, algo que deverá estar em linha de conta com a taxa de vacinação nas faixas etárias acima dos 65 anos. Então, se ocorrerem 15 internamentos ou óbitos nessa faixa etária, em que apenas quatro ocorrem nos não vacinados e 11 nos vacinados, a metodologia aparentemente utilizada no estudo do INSA e da DGS vai dizer-nos que a taxa de mortalidade é de 80% nos não vacinados (4/5) e de apenas 12% nos vacinados (11/95). Ora, nada nada mais errado, porque na realidade a mortalidade neste exemplo é de 4% nos não vacinados e de 11% nos vacinados (quase o triplo).
Como referi anteriormente, o estudo está cheio de incongruências, algo que é habitual nas autoridades da saúde. Por exemplo, o Relatório de Vacinação n.º 35 da DGS diz que “100% das pessoas com mais de 65 ou mais anos ("mais de 65 ou mais anos"?) têm pelo menos uma dose da vacina e a mesma percentagem de portugueses inseridos nesta faixa etária possui a vacinação completa”. É a habitual precisão da DGS, que diz uma coisa e outra coisa completamente diferente na mesma frase. É obra. Assim, podem papaguear uma narrativa nos meios de comunicação e, simultaneamente, deixar aberta uma escapatória para sacudir a água do capote.
Reparem que, num país em que a taxa de vacinação completa é quase de 90%, é impossível apresentar os dados papagueados por Marques Mendes. É absolutamente normal que com tamanha taxa de vacinação, os casos (hospitalizações e óbitos) continuem a ocorrer em maior número na população vacinada. Só um perfeito idiota não consegue perceber isso.
Portanto, é assim que se desvirtua a realidade. Se tiverem a coragem de ser sérios – uma vez que seja – apresentem ao país os dados actuais e em valor absoluto sobre os internamentos e óbitos. Deixem-se de percentagens manhosas e vergonhosamente manipuladas. Apresentem os dados absolutos. Digam os números reais e actuais que se verificam em cada hospital deste país. Por exemplo, hoje no hospital de Santa Maria, quantas pessoas estão internadas por Covid-19, quantas dessas pessoas estão vacinadas, quantas não estão vacinadas e quais as suas idades. Qual é o receio? Façam o mesmo em relação aos óbitos.
Há bem poucos dias, as autoridades britânicas informaram que cerca de 75% das pessoas internadas estão completamente vacinadas. Não tiveram nenhum problema em lidar com a verdade.
Por aqui, a verdade é outra coisa.