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Os médicos (do SNS) andam a dizer-nos – há séculos – que trabalham muito, que são explorados, que fazem muitas horas-extra por dia e que estão exaustos. Por estas razões, alegam que está em causa o atendimento aos doentes. Certamente que todos já demos conta das intermináveis listas de espera no SNS (consultas, exames e cirurgias) e no número inaceitável de horas que uma pessoa tem que esperar, sobretudo nos serviços de urgência.
Neste momento, a Ordem dos Médicos e os vários sindicatos ameaçam com inúmeras greves e avisam que as coisas só vão piorar. Parece que a gota de água tem a ver com o facto de o governo pretender que os médicos se disponibilizem a fazer mais do que as 150 horas de trabalho extraordinário, a que estão obrigados por lei. O governo pretende que os médicos aceitem fazer até 300 horas de trabalho extraordinário. Algo que os representantes dos médicos dizem ser algo inaceitável e impossível de implementar.
Ora, recapitulemos a situação e façamos alguns cálculos básicos.
Os representantes dos médicos sempre disseram que a maioria dos médicos tem estado sujeitos – há vários anos – à realização de várias horas extraordinárias. Todos nos recordamos de ouvir falar em 14, 16 ou até mesmo 18 horas de trabalho diário. Mais, sempre disseram que os médicos já se encontram a realizar 400, 500 e, nalguns casos, 600 horas de trabalho extraordinário por ano (eles nunca dizem que é por ano, supostamente para fazer a opinião pública considerar a impossibilidade de ser por mês). Ora, como agora fica bem claro – porque são os próprios médicos a admiti-lo -, os médicos não fazem mais do que 150 horas extraordinárias por ano. E os que têm feito as 150 horas extraordinárias anuais, só o fizeram porque a lei assim o determina, caso contrário, nem isso estariam disponíveis a fazer. Obviamente que há sempre excepções, mas a regra é a de que a maioria dos médicos não faz mais de 150 horas extraordinárias por ano. Aliás, qualquer pessoa que tenha o mínimo de contacto com os serviços de saúde rapidamente se apercebe dessa realidade.
Contas feitas, 150 horas anuais de trabalho extraordinário significa que, em média, cada médico realiza cerca de 40 minutos de trabalho extraordinário por dia. Uns singelos 40 minutos de trabalho extraordinário por dia, que nem sequer compensam os muitos minutos que os "xôs dotôres" despendem a tomar cafezinhos. Portanto, parece que estes 40 minutos diários de trabalho extraordinário têm posto a cabecinha dos "xôs dotôres" em água, levando-os ao tão propalado burnout.
Se atentarmos na proposta do governo – realizar até 300 horas anuais – logo verificamos que aquilo que está a ser pedido aos médicos (e não se aplica a todos os médicos) é que se disponibilizem a realizar, em média, pouco mais de uma hora de trabalho extraordinário por dia. Considerando o estado em que se encontra o atendimento no SNS, não se vislumbra a razão pela qual os médicos não estão disponíveis para colaborar na melhoria da qualidade do atendimento aos doentes.
O SNS tem muitos problemas para resolver, os doentes sofrem imenso no atendimento, sobretudo nos serviços de urgência e infelizmente não existe uma solução miraculosa que resolva a situação no imediato. Por que razão os médicos estão tão intransigentes em se esforçar um bocadinho – porque é mesmo de um bocadinho que se trata – e colaborar na amenização de um problema grave que acomete o SNS?
Não creio que o governo esteja a pedir demasiado aos médicos. E penso que nem será necessário recordar que esse acréscimo de trabalho é devidamente remunerado, pois de outra forma não poderia ser. Mas os médicos não estão disponíveis para aliviar um pouco a pressão no SNS, muito pelo contrário, eles pretendem usá-la como arma de negociação para forçar o governo a aumentar os seus salários. É apenas disso que se tratam a reivindicações dos médicos – mais dinheiro. Porque se o governo atendesse às suas pretensões salariais, já não havia burnout e os "xôs dotôres" já arranjavam mais tempinho para trabalhar no serviço público de saúde.
Os médicos só fazem este braço de ferro porque usam a concorrência do sector privado como factor de comparação. Portanto, trata-se apenas de mercantilizar o serviço público de saúde. Claro que o resultado só poderia ser aquele que está à vista de todos, isto é, a degradação do SNS em favor da promoção do negócio privado da saúde, para o qual os governos PS e PSD/CDS muito contribuíram. Isto é gravíssimo e inaceitável.
Do ponto de vista político, não se esperava da direita, outra coisa que não fosse aproveitar a actual situação para tentar degradar ainda mais o SNS e promover os amigos do sector privado. Já da esquerda, que está sempre a defender o SNS, é muito estranho vê-los a ceder às exigências inaceitáveis dos médicos. Eu vi e ouvi políticos que se dizem de esquerda, a defender um aumento de 50% no salário dos médicos, ao mesmo tempo que defendem um aumento inferior a 20% para todos quantos auferem o salário mínimo nacional.
De facto, não se percebe a razão pela qual a classe médica continua a ser uma classe de trabalhadores à parte de todas as outras. Os médicos continuam a ser vistos como trabalhadores especiais, quer pela classe política - de uma ponta à outra – quer pela comunicação social que dá sempre uma enorme e amiga cobertura às reivindicações dos médicos, quando, regra geral, procede ao contrário com todas as outras classes profissionais. Ou seja, qualquer outra classe de trabalhadores que proteste em Portugal é logo vista como um bando de preguiçosos e gananciosos que só querem ganhar mais dinheiro. Quando se trata dos "xôs dotôres", aparecem todos a bradar aos céus para que atendam às suas pretensões, porque eles são seres especiais.
Convinha acordar de uma vez por todas e perceber que os médicos – mesmo os que estão no SNS - são dos trabalhadores mais bem pagos no país. Se eles acham que ganham pouco, imaginem o quão mal remunerado é o trabalho de todos os outros, ou quase todos. Mais, a maioria dos trabalhadores em Portugal realiza muito mais de 150 horas de trabalho extraordinário por ano e não reclamam tanto, não ganham tanto e não contribuem para a paralisação de um serviço tão essencial, como é o caso dos serviços de saúde.
Alguns distraídos vêm logo alegar que, precisamente pelo facto de o serviço de saúde ser tão importante é que o governo deve atender às exigências dos "xôs dotôres". Ora, nada mais errado, desde logo porque os serviços de saúde não funcionam apenas com médicos e, como já referi, estes são os que menos razões têm para se queixar. Além disso, se o governo passar a olhar para o problema do SNS na perspectiva mercantilista e capitalista e atender às exigências daqueles que são os mais privilegiados, isso só irá contribuir para aumentar o exagerado poder que esta classe já possui – e nunca deveria ter possuído – e ficar refém dela para sempre.
A solução para o problema que se coloca pela falta de médicos no SNS é simples e única. Não há outra forma de resolver o problema de forma duradoura. Só é preciso um governo que tenha coragem de a implementar. Passa por “obrigar” todos os médicos formados nas faculdades públicas a estarem ao serviço do SNS. Sim, eu disse “obrigar”, entre aspas claro, porque ninguém seria, de facto, obrigado a fazê-lo. O Estado deve apresentar, previamente à entrada nas faculdades, um contrato a todos quantos desejem formar-se e especializar-se numa faculdade de medicina pública do país. Esse contrato deve ser muito claro quanto à qualidade da formação dos alunos/profissionais, quanto à progressão na carreira, quanto a todas as regalias (salário incluído), mas também quanto à obrigatoriedade de os médicos permanecerem ao serviço do SNS, pelo menos por um período que garanta a sustentabilidade e a qualidade do atendimento nos estabelecimentos públicos de saúde. Só assim se pode garantir que, a longo prazo, o SNS não terá de lidar com o problema da falta de médicos. Não há outra forma de resolver o problema.
Os falsos profetas da democracia e da liberdade bem podem barafustar com a implementação de uma medida com estas características, contudo, ela não tem nada de autoritária. O Estado coloca a opção às pessoas antes de elas enveredarem por esta profissão, quem não estiver de acordo tem bom remédio, que vá fazer outra coisa na vida ou que pague do seu bolso a realização do seu curso de medicina numa faculdade privada. Afinal, não é do privado que eles tanto gostam? Não é o sector privado que eles adoram usar como benchmarking? Ou estarão apenas interessados em apropriar-se do melhor dos dois mundos, que significa aproveitar a formação e a especialização (extremamente caras para o erário público) no Estado, para logo depois dar à sola para o sector privado?
Uma vez mais, parece que estou a ouvir os mesmos falsos profetas da democracia e da liberdade a barafustar com o facto de isso não acontecer com nenhuma outra classe profissional. Pois claro que não. O Estado só o deve pôr em prática quando está em causa a garantia de um serviço público de qualidade, que não falte nunca à sua população. Além disso, perguntem a todos os portugueses quão incomodados ficariam se o Estado lhes oferecesse a possibilidade de optar pela realização de um contrato com as mesmas características daquele que eu defendo que deve ser implementado com os candidatos a futuros médicos. A esmagadora maioria assinaria de cruz.
Se os médicos têm algum fundo de razão nas exigências que fazem, outras classes profissionais têm muitas mais razões de queixa. E, por uma questão de justiça social, todos os que auferem o salário mínimo nacional (ou pouco mais que isso) e todos os que recebem pensões miseráveis é que devem ser assunto prioritário para o governo. E não os "xôs dotôres" que são uma classe privilegiada face a praticamente todas as outras.
Se os médicos podem fazer chantagem com o Estado, depois de este lhes ter providenciado formação, especialização e experiência, por que razão não pode o Estado estabelecer, logo à partida e com toda a clareza e justiça as regras do jogo? Se os médicos não se coíbem a recorrer às leis mercantilistas para defender apenas os seus interesses pessoais, por que razão não pode o Estado avançar com uma medida que contenha os pressupostos que referi, quando todos sabemos que a esmagadora maioria dos candidatos aos cursos de medicina fica de fora do numerus clausus?
Não só pode, como deve. É esse o papel do Estado - garantir um serviço de saúde com qualidade aos seus cidadãos.