A Constituição que só protege o Orçamento do Estado
Ainda sobre o facto de o Primeiro-ministro ter enviado os três diplomas dos apoios sociais para o Tribunal Constitucional, nestes últimos dias assistiu-se a um festival de vozes defensoras do cumprimento escrupuloso da sacrossanta Constituição. Eu pergunto-me por onde terão andado os portadores dessas vozes sábias nos inúmeros episódios em que a Constituição foi violada ou simplesmente não foi e não é respeitada.
Em relação aos três diplomas dos apoios sociais que foram aprovados por larga maioria parlamentar e promulgados pelo Presidente da República, os guardiões da Constituição dizem que se trata de uma inconstitucionalidade e, por isso, inaceitável. De facto, o artigo 167.º dispõe que “os deputados não podem apresentar projectos de lei, propostas de lei ou propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento”.
O Presidente da República tem razão quando diz que deve ser o direito a servir a política e não o contrário. Há por aí muita gente que considera que deve ser mesmo o contrário e que a Constituição só serve para garantir a execução orçamental. O resto é palha.
Portanto, não se pode violar a Constituição, mas só naquilo que interessa e quando interessa. Fica até divertido constatar que esses guardiões da Constituição tenham ido a correr para o artigo 167.º, sem se lembrarem de parar e reparar, por exemplo, no artigo 9.º que diz que é tarefa fundamental do Estado “promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses…”;
Ou o artigo 13.º que diz que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei";
Ou o artigo 53.º que refere que “é garantida aos trabalhadores a segurança no emprego”;
Ou o artigo 58.º que diz que “todos têm direito ao trabalho”;
Ou o artigo 63.º que garante que “o sistema de segurança social protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho”;
Ou ainda o artigo 64.º que garante que “todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover”;
E ainda o artigo 72.º que diz que “as pessoas idosas têm direito à segurança económica e a condições de habitação e convívio familiar e comunitário que respeitem a sua autonomia pessoal e evitem e superem o isolamento ou a marginalização social”;
E mais ainda, o artigo 80.º que dispõe que a organização económico-social assenta no princípio da “subordinação do poder económico ao poder político democrático”; Este é mesmo para rir às gargalhadas.
E também o artigo 81.º que incumbe prioritariamente o Estado de “promover o aumento do bem-estar social e económico e da qualidade de vida das pessoas, em especial das mais desfavorecidas…”;
Olha! E para espanto de todos, ainda temos o artigo 147.º que diz que “a Assembleia da República é a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses”. Ninguém diria.
Como bem se vê, a coitadinha da Constituição farta-se de ser desrespeitada e ninguém demonstra incómodo com isso. Mas se a Assembleia da República – que segundo o artigo 147.º da própria Constituição é o órgão representativo de todos os portugueses - decidir aprovar apoios sociais de forma extraordinária e muito limitada no tempo para pessoas que se encontram em situação de carência económica aparecem logo os guardiões do templo e, neste caso muito concreto, o próprio Governo a clamar pela inconstitucionalidade.