O que anda Marcelo a chocar
Após a tragédia dos incêndios do passado dia 15 de Outubro, o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa não perdeu a oportunidade para, uma vez mais, fazer passar a ideia de que é uma espécie de consciência social do país, a supercola que vai unir um país em cacos.
Parece que anda por aí tudo chocado com o discurso que o Presidente fez vai para três quinze dias. Obviamente que Marcelo sabia das intenções do Governo quanto às medidas a apresentar em Conselho de Ministros e, acima de tudo, sabia que a então Ministra da Administração Interna já se encontrava demitida (até eu sabia). Mesmo assim, Marcelo fez o discurso que todos conhecemos, chamando a si a responsabilidade e proveniência das decisões que já estavam tomadas, pelo Governo e não por ele. Como se o Presidente da República tivesse alguma autoridade nesta matéria.
É óbvio que Marcelo foi oportunista e traiçoeiro. Oportunista, muitos já se aperceberam que sempre foi, mas no que respeita à traição ficou-se a perceber agora que não é uma característica exclusiva do anterior presidente. Mas bem pior que isso, quem diria que este Marcelo é o mesmo Marcelo que falou na noite do pesadelo de Pedrógão. Que divergência de pensamento sobre situações tão idênticas.
Marcelo é Marcelo, só que às vezes disfarça bem. Marcelo veio agora dizer que há por aí quem olhe para a realidade com base no diz-que-diz especulativo e, em boa verdade, é ele próprio que, fiel ao que sempre foi, não se escusa a comentar aquilo que um qualquer jornalista lhe interpela. Ou seja, os jornalistas perguntaram-lhe o que achava do facto de o Governo ter ficado chocado com o seu discurso, como se alguém deste Governo se tivesse pronunciado nesse sentido e Marcelo prestou-se logo a comentar o que ele próprio classifica como “diz-que-diz especulativo”.
É por essa razão que, mais cedo ou mais tarde, Marcelo vai acabar por cair na sua própria teia. Porque ele não resiste em ser um comentador profissional ou, como alguém disse um dia, um catavento de opiniões erráticas.
Mas, é preciso ir ainda mais fundo nesta questão. Marcelo falou grosso após os incêndios do dia 15 de Outubro, algo que não foi capaz de fazer aquando dos incêndios na zona de Pedrógão, porque o PSD já tratou de começar a arrumar a casa, tendo já assegurado a não continuidade de Passos Coelho ao leme do partido. Ou seja, o primeiro grande objectivo de Marcelo já foi conseguido, isto é, eliminar Passos Coelho da liderança do PSD. Agora vem o resto.
Marcelo deixa as coisas bem claras quando volta a atacar o actual Governo com declarações do tipo “chocado ficou o país”, ou quando deixa definitivamente cair a máscara afirmando que “o país não pode ser sistematicamente esquecido, (…) faltam menos de dois anos para o fim da Legislatura, portanto deste Parlamento e deste Governo”. Só faltou acrescentar que a partir de Janeiro, o PSD já terá uma nova liderança do seu agrado e que já falta “poucochinho” para as eleições. Eu desafio o senhor Presidente da República a clarificar o que realmente pensa do actual Governo. E se considera que a moção de censura apresentada pelo CDS, pelos motivos que todos conhecemos, deveria ter sido votada favoravelmente. Ele que gosta tanto de opinar sobre tudo e mais alguma coisa…
A mim, não resta qualquer dúvida que caso o PSD tivesse a casa arrumada e as sondagens fossem favoráveis, o Presidente Marcelo trataria de dissolver o Parlamento e convocar eleições. Como não é o caso, ficará para a próxima oportunidade.
Pois é, afinal Marcelo não é assim tão diferente de Cavaco. Difere do seu antecessor no que respeita à pose e às aparências, disso não há dúvida, mas no que concerne ao pensamento político e à manha é a mesma coisa. Até parece que estamos a reviver aqueles momentos iniciais em que Cavaco começou a rebelar-se contra o governo de então. Não tardará muito e talvez vejamos Marcelo a falar sobre escutas em Belém ou o estatuto político-administrativo dos Açores. É esperar para ver.
Para já, não resta dúvida que Marcelo se começou a encavacar com este Governo e que, indubitavelmente anda a chocar alguma.